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  • 25 julho 2023

CADE se manifesta sobre acordos entre concorrentes e métricas de sustentabilidade

Em 21 de junho deste ano, o Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica aprovou uma joint venture envolvendo alguns dos principais agentes no mercado de commodities agrícolas, cujo objetivo é desenvolver e operar uma plataforma de software B2B (business to business) para o rastreamento e padronização de métricas de sustentabilidade nas cadeias de suprimentos alimentícios e agrícolas.

Trata-se de uma sinalização inicial da autoridade brasileira a respeito da crescente intersecção entre defesa da concorrência e promoção da sustentabilidade. As considerações tecidas neste julgamento permitem extrair os entendimentos do Tribunal do CADE sobre os riscos comumente associados com a padronização de parâmetros de sustentabilidade entre competidores, e quais medidas devem ser adotadas para a devida mitigação.

O posicionamento final neste caso ainda é genérico, aplicável às formas de cooperação entre concorrentes de modo geral, sem oferecer diretrizes mais firmes e específicas sobre a interação entre essas duas variáveis. Trata-se de passo inicial do CADE em direção às discussões mais avançadas em âmbito internacional, com indicativos valiosos sobre as medidas necessárias para estruturar uma cooperação entre concorrentes em conformidade com a legislação concorrencial brasileira.

Além disso, no que diz respeito às salvaguardas adotas e exigidas pelo CADE para mitigar e permitir a implementação da plataforma de compartilhamento de informações sem que haja risco envolvendo dados concorrencialmente sensíveis, não é possível afirmar que a decisão é exatamente inovadora: o posicionamento da autoridade segue a tendência de precedentes envolvendo cooperações entre concorrentes, os quais também foram aprovados porque havia firewalls e salvaguardas operacionais e de governança suficientes para preservar a independência entre as atividades dos acionistas/ concorrentes e o objeto de cooperação.

A nossa equipe de Concorrencial e Antitruste realizou uma análise detalhada (i) da plataforma proposta pela joint venture notificada e (ii) do julgamento da operação pelo Tribunal do CADE, identificando os principais pontos críticos do tema e oferecendo algumas recomendações com base nesse julgamento (Caso nº 08700.009905/2022-83).

1. Sobre a plataforma

1.1 A operação envolveu a formação de uma joint venture destinada a desenvolver e operar uma plataforma de software B2B voltado para a criação de métricas de sustentabilidade, geradas com base na padronização anônima e agregada de dados¹ de diferentes fornecedores de produtos agrícolas e alimentícios, para permitir a aferição do impacto ambiental das atividades comerciais.

1.2 O objetivo central da plataforma é o de fornecer aos usuários uma forma de visualização de dados consistente e baseada em metodologias já existentes e atualmente usadas no mercado, sem desenvolver propriamente novas metodologias ou padrões. O intuito seria, portanto, aumentar as eficiências relacionadas à mensuração de dados sobre sustentabilidade, tornando o acesso à informação mais dinâmico e consolidado, considerando a crescente exigência, em nível nacional e internacional, das autoridades quanto à apresentação de informações de sustentabilidade, inclusive com relação à rastreabilidade dos produtos.

2. Conclusões e recomendações iniciais

2.1 A decisão analisada é uma das primeiras do CADE a abordar de forma mais explícita a interação entre defesa da concorrência e promoção da sustentabilidade, ainda que não tenha exaurido o tema². A aprovação da joint venture se amparou, em larga medida, no fato de que a plataforma a ser criada conjuntamente pelos concorrentes não criaria normas ou padrões de sustentabilidade para as cadeias de suprimentos alimentícios e agrícolas, mas tão somente consolidaria e disponibilizaria os dados relacionados a partir de métricas e metodologias já desenvolvidas e amplamente utilizadas no setor.

2.2 Assim, os agentes de mercado ainda deverão aguardar uma sinalização mais clara e direta do CADE sobre os critérios e parâmetros que possam autorizar níveis maiores de cooperação e uma redução na competição em razão da promoção de objetivos sustentáveis, sendo esse um aspecto central e talvez o mais delicado da intersecção entre o direito da concorrência e a sustentabilidade.

2.3 Não obstante, é possível apreender importantes recomendações da autoridade sobre os cuidados que devem ser adotados pelos agentes de mercado para atenuar os riscos concorrenciais associados às iniciativas entre concorrentes de modo geral. Mais especificamente, o CADE entende que cabe às empresas:

2.3.1 Demonstrar a existência de (i) garantias voltadas à preservação da autonomia e independência na gestão desse tipo de plataforma de compartilhamento de dados. e (ii) mecanismos de controle, monitoramento e tratamento do fluxo de informações sensíveis no âmbito de órgãos decisórios e de acionistas, para mitigar preocupações relacionadas ao exercício de poder coordenado e ao compartilhamento de informações concorrencialmente sensíveis entre competidores;

2.3.2 Disponibilizar na plataforma dados públicos, preferencialmente, e adotar cuidados, como agregação e anonimização, para tratamento dos dados que contenham algum grau de sensibilidade concorrencial;

2.3.3 Apresentar as soluções técnicas incorporadas para preservar níveis adequados de confidencialidade e segurança dos dados, como a criptografia dos dados e a segregação de hardware e infraestruturas de tecnologia de informação;

2.3.4 Formalizar compromissos antitruste que estabeleçam clara e expressamente princípios, estrutura de governança, sistemas, e fiscalização por profissional específico, qualificado e independente, bem como outras medidas para garantir que as interações no âmbito da plataforma estejam em conformidade com a legislação concorrencial;

2.3.5 Demonstrar que a plataforma poderá ser acessada por terceiros, apresentando os critérios e condições de participação que assegurem a não-discriminação e a isonomia; e

2.3.6 Demonstrar efetivo comprometimento com a implementação dessas garantias, apresentando documentos internos e vinculantes entre as partes com a apresentação dos objetivos da associação entre concorrentes.

3. Análise da operaçãopelo Tribunal do CADE

3.1 A formação da joint venture havia sido aprovada sem restrições pela Superintendência-Geral – órgão responsável por instaurar e instruir processos–, mas foi submetida à avaliação do Tribunal Administrativo em razão da proposta de avocação realizada pelo Conselheiro Victor Fernandes³.

3.2 O caso foi, então, distribuído à relatoria do Conselheiro Sérgio Ravagnani. Ao julgar a operação, o Relator reconheceu que tem se tornado uma exigência crescente a disponibilização de informações relacionadas à sustentabilidade na cadeia de produção, incluindo a rastreabilidade dos produtos. Não obstante, observou que o comprometimento com objetivos sustentáveis não constitui uma isenção concorrencial, havendo preocupações quanto ao uso indevido da pauta para legitimar práticas ambientais enganosas (greenwashing) que tenham como propósito encobrir condutas anticompetitivas.

3.3 O Relator destacou que dois pontos mereceriam uma análise aprofundada: (i) a possibilidade de criação ou imposição de padrões de sustentabilidade que resultem em efeitos exclusionários ou discriminatórios, e (ii) o acesso a informações sensíveis de concorrentes, fornecedores ou clientes por parte das acionistas da joint venture, na condição de administradoras da plataforma.

3.3.1 Os efeitos exclusionários ou discriminatórios estariam associados ao fato de que as acionistas da joint venture são grandes empresas mundiais de comercialização de commodities e poderiam vir a impor os padrões de sustentabilidade a fornecedores, causando a exclusão de fornecedores ou a alteração de condições comerciais com esses mesmos fornecedores em benefício delas próprias.

3.3.2 O acesso às informações que transitam na plataforma permitiria aos acionistas da joint venture ter conhecimento sobre variáveis competitivas relevantes de seus concorrentes, tendo em vista que os dados disponibilizados dizem respeito a relações comerciais e não são publicamente disponíveis. O acesso a tais informações, portanto, poderia conferir vantagens competitivas indevidas, além de gerar riscos de coordenação entre os fornecedores, atenuando a competição no mercado.

3.4 Para analisar tais riscos, o Relator se amparou nas diretrizes estabelecidas pela Comissão Europeia e pela autoridade concorrencial do Reino Unido (Competition and Markets Authority – CMA), que indicam certas condições que devem ser atendidas para mitigar as preocupações concorrenciais relacionadas com acordos de sustentabilidade entre concorrentes. Essas condições envolveriam, de modo geral:

(i) transparência no desenvolvimento das métricas e padrão de sustentabilidade e abertura para participação de todos os concorrentes interessados no desenvolvimento e seleção do padrão;

(ii) não obrigatoriedade direta ou indireta de cumprimento do padrão;

(iii) liberdade para as empresas adotantes do padrão/norma de adotarem padrões/normas mais rígidas para si;

(iv) ausência de troca de informações comercialmente sensíveis que não sejam objetivamente necessárias e proporcionais para o desenvolvimento, adoção ou modificação do padrão/norma;

(v) acesso efetivo e não discriminatório do resultado do processo de padronização, incluindo o acesso efetivo e não discriminatório aos requisitos e condições de uso do rótulo, logotipo ou marca acordados e a possibilidade de empresas que não tenham participado do processo de criação do padrão/norma de adotá-los em estágio posterior; e

(vi) observância de ao menos um dos seguintes critérios: (a) ausência de aumento de preço significativo ou de redução significativa na qualidade dos produtos envolvidos como resultado do padrão/norma adotada; ou (b) participação de mercado conjunta das empresas participantes do acordo para sustentabilidade inferior a 20% em qualquer mercado relevante afetado pelo padrão/norma.

3.5 Com base nesses critérios, o Relator observou que a “padronização” objetivada pela plataforma consistiria tão somente no fornecimento de solução digital amigável para disponibilizar dados de sustentabilidade comparáveis e consistentes para facilitar a medição e comparação ao longo do tempo por cada usuário, tendo como resultado um conjunto de métricas e metodologias divulgadas na plataforma, apresentados de acordo com a solicitação dos clientes, que são orientados pela legislação vigente e pela própria exigência de consumidores finais. Assim, a “padronização” seria um meio necessário para a organização e apresentação das informações aos usuários da plataforma.

3.6 A atividade da plataforma não seria, portanto, a de criar padrões ou normas para conformação de práticas e procedimentos do setor, mas tão somente a de consolidar, organizar e apresentar as informações de sustentabilidade recebidas pela plataforma, seguindo as métricas e metodologias já amplamente utilizadas pelo mercado. Eventuais novas métricas e metodologias para medição de parâmetros de sustentabilidade não serão criadas pela joint venture, sendo definidas em ambiente externo à plataforma, no contexto de discussões realizadas fora do seu controle, com organizações do terceiro setor, especialistas, acadêmicos, indústrias etc.

3.7 Além disso, o Relator observou que (i) a plataforma também não teria a função de fornecer a acreditação ou certificação de empresas, nem mecanismos de verificação de dados ou geração de selo ou rótulo de sustentabilidade para os fornecedores, clientes ou qualquer usuário; e que (ii) a plataforma estará acessível para qualquer participante da cadeia de suprimentos, em condições comercialmente razoáveis sem qualquer tipo de discriminação, preferência, obrigação de exclusividade ou privilégio, sendo que a condição de acionista tampouco resultaria em qualquer vantagem comercial para as Requerentes em relação aos demais usuários.

3.8 Por essas razões, o Relator descartou a possibilidade de riscos exclusionários, de fechamento de mercado ou de discriminação de concorrentes por meio da imposição de padrões de sustentabilidade, uma vez que:

3.8.1 tais padrões não serão criados pela plataforma, que apenas organizará e apresentará os dados conforme as métricas e metodologias já amplamente empregadas no setor;

3.8.2 eventuais novas métricas e metodologias para medição de parâmetros de sustentabilidade não serão criadas pela plataforma, sendo definidas em ambiente externo, com organizações do terceiro setor, especialistas, acadêmicos, indústrias etc.;

3.8.3 a plataforma não fornecerá certificações ou selos que poderiam gerar diferenciações e eventual discriminação entre fornecedores; e

3.8.4 será garantido acesso a quaisquer participantes da cadeia de suprimentos, em condições comercialmente razoáveis e isonômicas, não havendo a exclusão de integrantes da cadeia para o ingresso na plataforma.

3.9 Em relação ao risco de acesso e troca de informações concorrencialmente sensíveis, o Relator constatou que todos os dados na plataforma serão apresentados de maneira agregada e anonimizada, sendo visíveis somente para os proprietários envolvidos nos contratos privados que deram origem aos dados fornecidos à plataforma. Adicionalmente, a plataforma tampouco funcionará como marketplace, o que inviabilizaria a identificação e comunicação com outros usuários, a formação de novos negócios e acordos comerciais entre os usuários da plataforma. Assim, não haveria riscos de que as informações pudessem ser acessadas e usadas de forma anticompetitiva. As acionistas da joint venture esclareceram as soluções técnicas desenvolvidas para preservar os níveis adequados de confidencialidade dos dados que serão recebidos pela plataforma, o que também serviu para convencimento do Relator quanto à inexistência de tais riscos.

3.10 Embora tenha notado que as salvaguardas indicadas já constavam do Protocolo Antitruste adotado para implementação da plataforma, o Relator sugeriu alguns ajustes adicionais ao Protocolo Antitruste e ao Acordo de Acionistas apresentados pelas partes. Em síntese, as ponderações versaram sobre:

3.10.1 implementação de uma equipe especializada para fiscalizar o cumprimento dos compromissos concorrenciais;

3.10.2 existência de um Chief Compliance Officer com autonomia para o exercício de suas funções e condução de auditorias periódicas;

3.10.3 criação de um canal de denúncias anonimizado;

3.10.4 implementação de mecanismos de governança e de práticas esperadas pelos profissionais que assegurem os compromissos assumidos;

3.10.5 política de quarentena de executivos e/ou profissionais que sejam eventualmente contratados por algum dos acionistas;

3.10.6 detalhamento de vínculos profissionais que podem ser considerados incompatíveis com a independência gerencial da plataforma em relação às acionistas; e

3.10.7 implementação de procedimentos internos que garantam que não haverá troca de informações concorrencialmente sensíveis entre os membros do Conselho de Administração e acionistas.

3.11 Assim, por entender que os riscos associados à joint venture estariam mitigados pelas salvaguardas apresentadas e pelo próprio desenho e objetivo da plataforma, o Relator decidiu pela aprovação sem restrições da operação.

3.12 O posicionamento do Relator foi acompanhado por unanimidade do Plenário. Abaixo apresentamos um breve resumo das colocações principais aduzidas pelos Conselheiros do Tribunal em seus votos


Outros votos

O Conselheiro Luiz Hoffmann concluiu que seria fundamental a adoção de Protocolo Antitruste bem estruturado e mecanismos de governança claros, mas que a sua mera existência, sem uma aplicação prática e efetiva dos compromissos, não seria suficiente para garantir a conformidade concorrencial. Assim, o compromisso real e a demonstração da implementação do Protocolo seriam necessários par autorizar a aprovação da joint venture, sob pena de revisão da operação, nos termos do art. 91 da Lei nº 12.529/2011.

O Conselheiro Gustavo Augusto traçou distinções entre o presente caso e o caso recentemente julgado pelo Tribunal e aprovado com restrições, relacionado à iniciativa Catena-X, indicando que não haveria compartilhamento horizontal de informações entre competidores; que o plano de negócios prevê o escopo e aplicação dos dados coletados, com fiscalização direta do cumprimento das normas antitruste. O Conselheiro também observou a relevância dos dados como insumo econômico, o que poderia suscitar riscos de exercício de poder de mercado na aquisição e centralização de dados em plataforma.

O Conselheiro Victor Fernandes teceu considerações sobre a repercussão do tema em jurisdições europeias, com a publicação de documentos orientativos e revisão de guias sobre acordos horizontais, com a finalidade de fornecer à comunidade empresarial orientações mais previsíveis acerca da licitude de iniciativas de sustentabilidade. O Conselheiro indicou que os negócios sustentáveis potencialmente prejudiciais à concorrência devem ser analisados com cautela, sem afastar o rigor da aplicação da Lei de Defesa da Concorrência. Pontuou também que existem casos envolvendo a temática que são, de fato, pró-competitivos, porém quando isso não ocorre, faz-se necessário assegurar o bom funcionamento e aplicação das leis antitruste.

O Presidente Alexandre Cordeiro destacou sua preocupação com a expansão da competência da autoridade, que deveria se ater apenas ao estritamente voltado à proteção e defesa da concorrência e o bem-estar do consumidor. Assim, o caso não seria o “de sopesar concorrência e sustentabilidade”, tratando tão somente de uma operação sem quaisquer riscos ao bem-estar dos consumidores em termos concorrenciais, motivo pelo qual acompanhou a decisão pela aprovação sem restrições.


¹ Em síntese, as empresas fornecerão à essa plataforma dados de rastreabilidade, dados ambientais e dados sociais gerados por meio de seus contratos comerciais para agentes externos, sem relação com a plataforma, que realizarão a agregação desses dados e criarão métricas que reflitam os indicadores de sustentabilidade obtidos. Os dados fornecidos consistem em informações sobre o local de produção, práticas agrícolas utilizadas, consumo de água, produtos químicos e energia, relatórios de desmatamento, emissão de carbono, trabalho forçado, direitos humanos, proteção à criança, entre outros. A plataforma, portanto, não gera novos dados, apenas compila de maneira anonimizada os dados já disponíveis, no objetivo de simplificar o gerenciamento, apresentação e reporte das informações..

² A decisão não tratou de aspecto crucial e bastante sensível dessa interação, qual seja: a possibilidade de aprovar acordos entre concorrentes que sejam (i) voltados para a criação de padrões e normas para a promoção de sustentabilidade e que (ii) eventualmente reduzam a concorrência.

³ Para o Conselheiro, era necessário realizar um exame mais aprofundado sobre os critérios de análise concorrencial aplicáveis a acordos entre concorrentes que tenham por objeto o desenvolvimento de métricas de sustentabilidade, analisando em que medida as salvaguardas adotadas pela joint venture, como, por exemplo, Protocolo Antitruste e mecanismos internos de governança, mitigariam efetivamente as preocupações concorrenciais relacionadas ao caso.

Nosso escritório conta com uma equipe especializada em Concorrencial e Antitruste. Para obter esclarecimentos sobre temas relacionados à concorrência e sustentabilidade no CADE, ou outros temas que sejam de seu interesse, por favor, entre em contato com nossos profissionais.

Tem alguma dúvida? Entre em contato com a nossa equipe marketing@lefosse.com


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