Geral
Contratos administrativos em tempos de pandemia
A Administração Pública é responsável por parcela relevante das contratações no Brasil. Movimenta diversos setores econômicos, desde a contratação de obras de infraestrutura, dos mais variados tipos de prestação de serviços, até de fornecimento de bens. Os contratos administrativos, portanto, desempenham papel fundamental na economia do país para pequenos, médios e grandes empresários e, pelo lado da Administração Pública, permitem a consecução de seus objetivos e atividades. A Covid-19 afetou – e continua afetando – todos os âmbitos de atuação do Governo e da vida pública e privada da população, inclusive os contratos na pandemia.
Contratações diretas
Para a celebração de contratos na pandemia pela Administração Pública, em regra, é necessária a realização de licitação. Esse procedimento, por ser burocrático e demorado, se mostra inadequado para as contratações para o atendimento de necessidades decorrentes de estado de calamidade pública. Portanto, em situação excepcional, a contratação direta é autorizada pela Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos.
Apesar de conter previsão geral autorizativa, a Lei Federal nº 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento do Covid-19, trouxe hipótese específica: é dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços (inclusive de engenharia) e insumos destinados ao enfrentamento da pandemia. A autorização se aplica apenas enquanto perdurar o quadro e mais: possibilita a contratação de fornecedora que esteja com inidoneidade declarada ou com o direito de participar de licitação ou contratar com o Poder Público suspenso, desde que comprovada como a única capaz de atender o objeto contratual. Tal lei também inovou ao prever a aquisição de bens usados, ao possibilitar que os contratos durem até seis meses (prorrogáveis enquanto durar a necessidade de enfrentamento da emergência) e ao viabilizar aumentos ou supressões do percentual de alteração do contrato em até 50% do valor original.
A previsão federal foi reproduzida por diversos Estados e Municípios em suas leis específicas, como é o caso de São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo.
É preciso se atentar ao fato de que o dever de realizar licitações não está suspenso. A autorização é delimitada pelas normas e não abarca toda e qualquer contratação, mas apenas aquelas que se relacionam com o combate da pandemia. Além disso, é fundamental que o particular se assegure de que todas as regras previstas em lei estão sendo observadas, tendo em vista que esses contratos podem posteriormente gerar sanções dos órgãos de controle.
Requisição de bens e serviços
Outra medida já existente, mas também trazida pela Lei Federal nº 13.979/2020, diz respeito à requisição administrativa.
O instituto, diferentemente dos contratos administrativos, caracteriza ato administrativo unilateral e autoexecutório do Poder Público. É instrumento que visa a utilização de bens e/ou serviços particulares para o atendimento de necessidades coletivas, mediante pagamento de indenização ulterior.
Sua utilização tem autorização constitucional, de modo que, para o enfrentamento da pandemia, poderão ser requisitados bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa. Mesmo sendo um ato unilateral do Poder Público, nos termos da norma federal, a determinação da requisição administrativa deve se basear em evidências científicas e em análises das informações estratégicas em saúde, limitando-se ao mínimo indispensável a preservar a saúde pública.
A requisição traz alguns desafios. O primeiro deles é compreender em quais situações ela estaria autorizada. Isto porque representa medida de exercício do poder de polícia estatal na propriedade privada e, como limitação de direito privado, deve ser vista como a última opção – e não a primeira – na tomada de decisão pelos gestores públicos. Apenas em casos em que uma contratação não seja possível seria permitida a adoção do instituto da requisição. As medidas devem ser tomadas sempre partindo das menos para as mais gravosas – e isto é previsto não só pelo princípio da proporcionalidade, mas também pela razoabilidade.
Outro ponto diz respeito aos conceitos abertos de pagamento posterior e justa indenização. Quão posterior pode ser o pagamento? Qual conceito de “justa” será adotado? Indenização substitui remuneração? Não há norma no ordenamento jurídico brasileiro que responda a essas questões de forma clara e objetiva.
O Ministério da Saúde estabelece que a requisição deverá ocorrer nos termos da Lei Federal nº 8.080/1990. Esta disciplina as ações e serviços que constituem o Sistema Único de Saúde (SUS), autorizando os entes federativos a requisitarem bens e serviços para o atendimento de necessidades coletivas decorrentes de calamidades ou epidemias.
Por sua vez, a lei não traz o procedimento para o cálculo da indenização justa e posterior. No entanto, na medida em que tal lei disciplina a atuação do SUS, não seria descabida a interpretação de que a Tabela do SUS, documento que traz o valor monetário de procedimentos de saúde, de leitos de UTI e outros, poderia servir como parâmetro para que a indenização “justa” seja aferida.
O desafio se apresentará quando a Tabela do SUS não trouxer parâmetros que atendam a magnitude de pandemia que passamos: por exemplo, como aferir qual será a indenização justa caso o Poder Público decida requisitar quartos de hotéis para abrigar leitos hospitalares?
Até o momento, o que pode ser observado é que diversas esferas do Poder Público (União, Estados e Municípios) estão requisitando administrativamente bens e serviços, mediante atos publicados nos respectivos Diários Oficiais, sem qualquer coordenação entre si (e, em alguns casos, até mesmo concorrendo entre si por meio de requisições de diferentes entes para os mesmos bens e serviços). As requisições são, entre outras, de materiais para a proteção e atuação dos profissionais de saúde, equipamentos de tratamento, leitos de hospital, assim como imóveis para o funcionamento de unidades de saúde. As determinações tampouco são claras em relação à quantificação da indenização devida.
As requisições administrativas do Poder Público para o enfrentamento da pandemia não estão imunes à análise judicial, podendo o Poder Judiciário atuar tanto para suspender eventuais requisições ocorridas sem autorização quanto para resolver conflitos de competência entre os entes federativos que “disputam” determinados bens, o que já vem ocorrendo na prática.
Manutenção de contratos já existentes antes da pandemia
Finalmente, o Covid-19 também gerou novos desafios e causou impactos relevantes na economia do país.
A determinação de suspensão de serviços não essenciais foi decretada por Estados e Municípios na tentativa de contenção do vírus. Isto fez com que atividades econômicas – no sentido mais amplo do termo – deixassem de gerar receitas esperadas.
Tem-se a primeira peça derrubada do dominó: quanto menor a receita, menor a capacidade de cumprimento de obrigações fiscais, trabalhistas, perante credores, entre outras. O que é inversamente proporcional ao maior o número de desligamentos de funcionários e maior inadimplência tanto das empresas quanto da população.
Como lidar, então, com os contratos já existentes antes da pandemia?
Em medida vista como pioneira, foi editada a Lei Municipal nº 17.335, de 27 de março de 2020, na cidade de São Paulo. Entre outros temas, a norma dispõe sobre autorização de medidas excepcionais no âmbito dos contratos administrativos e traz instrumentos para possibilitar a manutenção e o pronto restabelecimento da prestação de serviços contínuos quando o estado de calamidade pública decorrente do coronavírus acabar.
Medida que merece destaque é a manutenção de pagamentos mensais do contrato para os quais for indicada a suspensão total ou parcial dos serviços, deduzidas as despesas diretas e indiretas que efetivamente deixarem de incorrer. Contudo, há condições para a manutenção do pagamento mensal: (i) não demissão dos empregados afetos à prestação do serviço no período em que perdurar a medida excepcional; e (ii) outras condições e contrapartidas a critério da unidade contratante.
Apesar de a iniciativa ser positiva, é possível questionar a previsão, uma vez que representa forma de intervenção direta nas atividades dos contratados pela Municipalidade. Ainda, há latente insegurança jurídica, uma vez que não especifica quais outras condições seriam impostas unilateralmente pela unidade contratante.
O Regulamento (Decreto Municipal nº 59.321, de 1º de abril de 2020) define como serviços contínuos com alocação de mão de obra não eventual aqueles que tenham por objeto vigilância e segurança patrimonial; controle, operação e fiscalização de portarias e edifícios; recepção; limpeza, asseio e conservação predial; e outros serviços que constituam necessidade permanente do órgão ou entidade contratante. Ainda, determina que a Administração Pública municipal direta e indireta deverá privilegiar e esgotar todas as medidas legais que visem à manutenção dos contratos firmados antes da pandemia, ficando a decisão pela rescisão contratual como a última medida a ser adotada. Por fim, a norma estabelece que as suspensões, reduções ou alterações mencionadas não configuram alteração de objeto contratual, dispensando-se a celebração de termo de aditamento para tais fins.
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